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sábado, 30 de janeiro de 2016

e se alguém o pano, de Eliane Marques, um livro de poemas que valem ser pensados e repensados

e se alguém o pano, um livro de poemas que valem ser pensados e repensados


Detesto quando um crítico-ensaísta faz o mero elogio/descarte de um poeta ou, melhor dizendo, de um texto poético. Mas isto já é falar do meu gosto. Jamais assim devo fazer. Condenaria aquele que, ao comentar um livro de poemas rarefeitos, se pusesse a defender as suas qualidades argumentando sem argumentar solidamente. Antes este escrevesse loas.
Não farei nem um nem outro ao falar da aventura radical de “e se alguém o pano” de Eliane Marques, poeta que, ao que sei, está em seu segundo livro – e o primeiro, eu desconheceria, o que não permite fazer uma análise mais completa de sua obra.
No entanto, a simples leitura de “e se alguém o pano” nos permite observar a existência ali de um incipiente porém instigante e entusiasmador experimentalismo. Nos parece a obra, em grande extensão, uma colcha de retalhos “inteligentes” ou, melhor dizendo, “cultos”, no sentido de cultura anterior ao antropológico que está em voga. A Eliane Marques fica evidente que não “faltaria cultura pra cuspir nesta estrutura”, parafraseando Raul Seixas.
Talvez, “cuspir nesta estrutura” fosse a intenção oculta da sua poesia (de e se alguém...) porém, esta permanecerá muito oculta para a maior parte dos leitores bem informados, aqueles que eu diria terem um alto grau de “alfabetização funcional poética”. Isso se dará, provavelmente, por uma série de motivos que ainda não sei se posso compreender e explicar. Sendo, no entanto, um livro que vale a pena ser pensado e repensado (e que faz pensar, nos enche de indagações) aqui estamos nós.
À primeira vista, pareceria uma obra que tende para a estética dadaísta, o que poderia ser reforçado pelas palavras da própria autora quando informou no lançamento oficial da obra que, quando inclui palavras de línguas africanas pouco conhecidas , por exemplo,  não pretende produzir um poema que seja decodificável em termos interpretativos, dito em outras palavras. Em outros momentos, no entanto, oscila um tanto para a estética surrealista, fazendo uso de algumas imagens que retratam o absurdo.
Os motivos que tornam mais difícil a decodificação dos poemas, no entanto, não são apenas os que derivam ou, mais provavelmente, coincidem com estes dois velhos “ismos” que já deveriam ser bem conhecidos e compreendidos por todos os aspirantes a crítico e, quiçá, a poeta.  As imagens absurdas, por exemplo, não derivam de um mundo onírico.
A experiência vivida que produz os poemas do livro é muito pessoal e, talvez, intransferível, o que aumentaria a opacidade do texto, afirmação em que nos servimos de um conceito poundiano de que é necessário um mínimo de experiência compartilhada entre o autor e o leitor para a interação ser possível. Note-se que esta barreira é atenuada se considerarmos como experiência vivida a leitura histórica que percebe-se de viés nos poemas do livro, manifestas em escolhas linguísticas e nas imagens do inconsciente.
Pode-se, caso seus preconceitos não o impeçam, mesmo que você não capte ou compreenda nada dos poemas, perceber ao menos o valor das referências históricas do livro (por vezes contextualizadas no interior da  história literária). Quanto às similaridades estético-formais na história da literatura, já percebemos, de acordo com este nosso raciocínio, que as coisas não são tão simples.
A provável coincidência formal com dadaísmo e surrealismo já estão anotadas. Porém, a similaridade com as formas do movimento dadá não se dá sempre de forma tão óbvia: em vez de usar sequências de sons sem sentido, a poeta opta, por exemplo, por usar palavras que já possuam um significado (mesmo que em outras línguas que não a portuguesa) mas que nos seus poemas tornam-se puro significante sem sentido. Eliane Marques não tem a intenção de ser “entendida”,  não num sentido convencional. Evidentemente, é de outra forma que entendemos um poema. Ouvimos, enxergamos, tateamos. Depois vamos tentar achar um sentido para o todo.
Porém, na poesia de Eliane ainda não vamos achar este sentido total: o texto não termina e nossa gestalt vai acendendo relâmpagos de entendimento ao longo dele. Os significantes sem significado são entremeados por muitas imagens (mesmo absurdas), registros linguísticos (que incluem neologismos não evidentes nem “naturais”,  fáceis de se gerarem num coloquialismo dinâmico urbano) e alguns recursos formais tradicionais da poesia que não vejo motivo para comentar em uma poesia que aspira ao experimentalismo (a anáfora, por exemplo). Todos estes recursos da poeta podem nos servir de estímulo para a difícil fruição na leitura dos poemas. Selvagem e bruta, aparentemente, a poesia de Eliane parece brotar de uma mente muito racional, que tem lá os seus meios de manter o seu vínculo comunicativo, eximindo-se de ser meramente expressiva .
Outro recurso que dá uma aparência dadaísta (não usado pelos dadás) mas que nos remete antes à poesia de e.e.cummings, à esparsa poesia cubista, ao Pound dos “Cantares”, ao Eliot editado por Pound de “The Waste Land”,  às estruturas gramaticais entrecortadas de “Grande Sertão Veredas”,  são o que eu chamaria numa abordagem linguística de “estruturas abertas”. Estas são anunciadas desde o título do livro (e se alguém o pano,  uma estrutura gramatical inconclusa). De fato, estas “estruturas abertas” são maioria talvez nos poemas do livro. Mais uma vez a gestalt do leitor é convidada a agir, encontrando-se, porém, no beco sem saída de que estas estruturas não parecem ter nenhuma possível omitida conclusão lógica, senão juntando-as aos próximos retalhos linguísticos – esperança que pode ser frustrada quando chegarmos a um termo no texto e não encontrarmos uma conclusão. Neste caso, temos que passar ao próximo poema esperando melhor resultado na leitura.

            Para concluir, deixando pra trás uma ampla gama de abordagens e muitas questões que talvez eu somente possa responder satisfatoriamente em uma leitura de outra produção de Eliane – a qual espero ansiosamente – já que trata-se de uma poesia muito instigante e, portanto, promissora, e já que seu experimentalismo me parece estar ainda no princípio de uma longa caminhada que poderá render muitos frutos. 

Eliane Marques é poeta e editora e nasceu em Santana do Livramento, RS.