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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

ADRIAN'DOS DELIMA: JOÃO CABRAL DE MELO NETO: A PERCEPÇÃO DESAUTOMÁTICA TÁTIL EM “UMA FACA SÓ LÂMINA”.



JOÃO CABRAL DE MELO NETO: A PERCEPÇÃO DESAUTOMÁTICA TÁTIL EM “UMA FACA SÓ LÂMINA” 


Adrian'dos Delima



     

Maurice Merleau-Ponty,  em seu “Fenomenologia da percepção”, nos propõe que é via corpo que apreendemos as significações do mundo. Quer isto dizer que é através da atividade dos sentidos que tomamos consciência do mundo, é através deles, atuando em conjunto, que as coisas se tornam signos, pela atuação das qualidades destas. Toda consciência é consciência de algo externo a nós. Em seu dizer:
“...O sentir envolve a qualidade com um valor vital, a capta antes de tudo em sua significação para nós, para esta massa ponderante que é nosso corpo, e disto decorre que ele carregue sempre uma referência ao corpo.”...
“...O sentir puro designa uma experiência na qual não nos são dadas qualidades mortas, e sim propriedades ativas.”
“...O sentir designa uma experiência na qual não nos são dadas qualidades mortas, e sim propriedades ativas.”
            Sendo ou não as afirmações do filósofo francês verdades universais, das quais sempre podemos e devemos duvidar, eu próprio não me considerando em condições de julgar a fenomenologia existencialista/ pseudo-existencialista do defensor da importância primordial da percepção sensorial e da corporalidade para a apreensão do mundo, João Cabral de Melo Neto, em “Uma faca só lâmina (1955)”, uma obra na qual o trabalho com a imagística fundada na percepção sensorial atingiu já o pleno desenvolvimento na poética do pernambucano, o nosso poeta da existência concreta das coisas nas palavras descobre, desvenda para o leitor aquelas propriedades ativas das coisas a que se referia o fenomenologista, nos brindando com uma poesia que relaciona de uma maneira dinâmica as propriedades dos objetos, extrapolando o que Ponty chama de “sentir puro”, que é o sentir impressões isoladas (o puro branco, por exemplo), para chegar às sensações como imagens concretas que tomam forma no próprio corpo do “sujeito” antes de se tornarem linguagem. Devemos recordar  que a idéia de sensação pressupõe algo além do “puro sentir”, pressupondo a associação e a própria imagem como base de toda a significação.
            Já no início de Uma faca só lâmina temos o objeto-faca em sua forma preliminar, a “bala” passando no músculo de “um homem”, “o morto”, sujeito passivo do poema, portador das sensações inerentes à “faca” que compõe as imagens e o próprio tema da obra. A bala “enterrada no corpo” está lá, latejando na carne do sujeito, nosso personagem:

                        qual bala que tivesse
                               um vivo mecanismo,
                               bala que possuísse
                               um coração ativo

            É por suas propriedades ativas que a bala, mais tarde transformada em faca na evolução do poema adquire significação, e é apenas em função das sensações que a imagem da faca-bala-relógio traz que o leitor poderá “compreender”, ou captar o poema.
            Mas, conforme dito, e como se mostra óbvio, tal faca não é objeto presente á percepção do leitor, senão como imagem, uma experiência que reproduz ou copia com o máximo grau de realismo possível a experiência perceptiva prévia na ausência da estimulação sensorial original, a qual será a base de toda significação. A faca-imagem do poema é, simplesmente, o signo pré-lingístico que mimetiza o próprio objeto-faca na ausência deste:

                        Isso que não está
                               nele está como a ciosa
                               presença de uma faca,
                               de qualquer faca nova.

            Mas, como dissemos acima, tal faca no interior do corpo do “sujeito” do poema (ou do eu-lírico) quando alude à impressão do vazio no lugar do corpo do qual é extraída a faca que corta “o homem”, como se observa nas 5ª, 6ª e 7ª estrofes da parte intitulada por Cabral como “A”. O vazio:

                               porque nenhum indica 
                               essa ausência tão ávida 
                               como a imagem da faca 
                               que só tivesse lâmina.
                               nenhum melhor indica 
                               aquela ausência sôfrega 
                               que a imagem de uma faca 
                               reduzida à sua boca.
                               que a imagem de uma faca 
                               entregue inteiramente 
                               à fome pelas coisas 
                               que nas facas se sente.


                E “medindo-se pelo avesso”  (8ª estrofe de “B”), ou seja, no vazio de seu ferimento, a imagem ou “novo signo” faca, se funda como presentificante de uma percepção passada utilizando-se de sua afinidade com outros signos, alinhando-se a estes em um “eixo vertical” (paradigmático), na expressão de Benedito Nunes, baseada em Roman Jakobson (de fato sucedem-se como sinônimos bala, faca, relógio, boca, vazio, ausência, etc.); e este eixo comporá a imagem global do texto, sua gestalt. Isto é,podemos dizer, agora com as palavras de Benedito Nunes, que “a matriz lógica das metáfora” é “um conjunto de três símiles encadeados” (bala, relógio, faca) ou que “esses termos comparantes” são descritos como “objetos que se correspondem” em suas qualidades materiais”. Essa “qualidades materiais” seriam a face sensível dos objetos do mundo material que enfim dariam sentido ao signo, seriam o seu “fundador”.                                                                                                                                                 Uma faca só lâmina, conforme o próprio autor declara, e conforme nos avisa o subtítulo “serventia das idéias fixas”, é fruto de uma obsessão (fruto de um amor frustrado, segundo Cabral!). Voltando ao poema em si, nos parece que se alinham verticalmente à “faca”, também as idéias de vazio, fome, ausência e furor, por exemplo. De certa forma, as qualidades ativas, corpóreas, daqueles objetos concretos. Essa fome, esse furor (o vazio da faca extraída), contrasta com a sensação que tem “o homem” da faca cravada na carne, a “idéia fixa”, ou a obsessão a que nos referimos, e atua na imagística do poema dando a ele (o homem) aquela sensação permanente que o faria mais desperto”(2ª estrofe da parte G), lhe daria maior impulso (3ª de G), “mantendo vivas todas as mola da alma” (5ª de G). É a “serventia das idéias fixas”, ou das sensações permanentemente sentidas em suas qualidades, através da lembrança e da lucidez. E através de uma aparente frieza, desde o signo principal, que dá título ao poema, a faca, o meramente corpóreo sendo usado para figurar o que ocorre no espírito do “sujeito”, temos aqui uma poesia, que poderia qualificar-se como “viva”, verdadeiramente, embora hoje o termo esteja muito gasto por um uso que se dá de muitas formas, com muitos sentidos.                                     
              Assim é que “o homem”, saindo de seu automatizante estado de dormência, ou deixando de ser “o morto”, desperto por suas sensações, analogamente ao “homem-poeta”, “aquele que trabalha com palavras”, desautomatiza sua percepção “congelada” no signo convencional, que é o linguístico, e funda o “signo novo”, despindo via linguagem poética as qualidades sensíveis de seu objeto, dinamicamente relacionadas às qualidades de outros objetos:

                                Quando aquele que os sofre 
                                trabalha com palavras, 
                                são úteis o relógio, 
                                a bala e, mais, a faca.
                                Os homens que em geral 
                                lidam nessa oficina 
                                têm no almoxarifado 
                                só palavras extintas:
                        ...
                        Pois somente essa faca 
                               dará a tal operário 
                               olhos mais frescos para 
                               o seu vocabulário
                        ...
                        sabe acordar também 
                               os objetos em torno 
                               e até os próprios líquidos 
                               podem adquirir ossos.


                Mas como é sabido que, por mais que percepção se reavive na memória do “sujeito” (agora o sujeito-emissor, João Cabral, no caso: observe-se o possessivo “me” na 3ª estrofe da parte final do poema– “De volta dessa faca”...“da imagem em que mais /me detive, a da lâmina”);  por mais que se reavive a percepção na memória, as imagens evocadas pelo sujeito-emissor não atingem nunca a expressão perfeita, via linguagem verbal:

                               pois de volta da faca
                               se sobe a outra imagem
                                ...
                               e daí à lembrança 
                               que vestiu tais imagens 
                               e é muito mais intensa 
                               do que pode a linguagem,


                E mesmo a imagem composta na memória não atingiria a perfeita apreensão da realidade, na volta ao mundo real, a conclusão de uma obra poética, voltando da faca-bala-relógio:

                               por fim à realidade, 
                               prima e tão violenta 
                               que ao tentar apreendê-la 
                               toda imagem rebenta.


            Embora este seja o sentimento do poeta Cabral, o criador, o artífice, o sujeito-emissor de que falávamos há pouco, estas últimas conclusões do poeta podem não estar de acordo com o que podemos concluir através da leitura e interpretação do poema, parecendo “Uma faca só lâmina” um poema ímpar na língua portuguesa em termos de criação de uma logopéia formada de imagens tão concretas que nos fazem pensar e vivenciar emoções através da utilização de imagens relativas ao sentido do tato. Uma poesia corpórea, que poderia corroborar a fenomenologia de Merleau-Ponty. E não sei se o próprio João Cabral tinha consciência do fato. mas seu poema pode ser tomado como uma demonstração do pensamento de Merleau-Ponty e Sartre de que o corpo humano é, junto ao externo real, a base de toda a consciência.

                               

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